Por Jacques Guarino
Ao receber o convite para escrever neste site, fui tomado inicialmente pela alegria, mas também pela dúvida, uma vez que o chamado fazia referência a um profissional da lei que pudesse abordar, com segurança, conceitos jurídicos relativos ao Direito Trabalhista e Empresarial e, no meu íntimo, pulsava a vontade de ir um pouco além, de não me ater ao tecnicismo, de deixar fluir a experiência imaginativa, pois entendia que esta oportunidade me oferecia a possibilidade de partilhar situações não vividas, como um vislumbre da realidade, ou de confirmar algumas experiências, permitindo explorar um mundo maior e mais complexo que o estritamente jurídico.
Assim, optando pela difícil missão de tentar fazer a junção de técnica e arte, aspectos que poderiam ser considerados díspares, passei a buscar a inspiração para aquilo que seria o objeto deste texto. Aguardar uma fonte externa inspiradora é o mesmo que esperar por algo que nunca virá. É produzindo que estimulamos a motivação. É o processo de redação que inspira o escritor.
Então, me pus a escrever e lembrei do efeito que teve em minha vida a leitura de um jornal impresso, em minha pré-adolescência. Tratava-se de um periódico que circulava somente em algumas regiões de Belo Horizonte e, a despeito de ser compacto, possuía bastante abrangência e adotava um tom mais informal, o que caía como uma luva em face da minha inocente visão de mundo.
O referido jornal era distribuído gratuitamente e fez o meu horizonte se expandir de forma monumental, pois, com ele, passei a me informar e, deste modo, moldar meu pensamento sobre temas que, até então, não eram de meu interesse, mas que tiveram impacto significativo em minha visão de mundo.
Assim, ciente de que fui, também, educado pelo jornalismo e, agora, com a nobre missão de escrever, tenho a nítida certeza de que produzir bons textos é algo muito trabalhoso.
Entretanto, ao receber o honroso convite da editora, confirmei aquilo que Gustavo Corção, na obra Três alqueires e uma vaca, afirma: “Uma das grandes alegrias que nos são dadas, neste mundo tantas vezes inóspito e doido, é o encontro de um bom parceiro de ideias” (p. 81), no presente caso, uma parceira.
Frederick Douglass, a libertação da escravidão.
Com a convocação aceita, veio à memória um texto de autoria de Paulo Cruz, colunista da Gazeta do Povo, no qual ele conta a história de Frederick Douglass, nascido escravo nos EUA, em 1818, e que ao completar oito anos foi vendido para trabalhar em uma casa de família na função de cuidador de uma criança, cuja mãe lia a Bíblia diariamente e tal hábito fez com que despertasse nele a “curiosidade a respeito do mistério da leitura” e, assim, pediu à sua “dona” para ensiná-lo a ler, o que foi aceito por ela e isso transformou a sua vida.
A senhora, cristã fervorosa, se empolgou com o desempenho de Douglass e resolveu contar ao seu marido, que não recebeu a notícia com o mesmo contentamento dela e assim reagiu: “Se você ensinar esse escravo a ler, não haverá como mantê-lo sob seu domínio. Se ensiná-lo a ler, ele quererá saber como escrever; e, aprendendo, fugirá”.
Quando Frederick Douglass escutou aquela sentença, algo aconteceu em seu íntimo. O efeito daquelas duras palavras não foram tênues, nem passageiras, pois naquele instante se deu conta de que “o conhecimento tornava uma criança inapta para a escravidão” o que sedimentou a percepção de que o conhecimento era o caminho direto da escravidão para a liberdade.
A leitura foi, para Frederick Douglass, a libertação da escravidão. Isto é,
uma mente impulsionada pela inteligência e pelo conhecimento, fez com que ele, ainda que tivesse as amarras da escravidão, se sentisse livre, pois a ignorância é uma “qualidade” que mantém o homem escravizado.
Entretanto, vou abordar um outro aspecto da liberdade, a de expressão, uma vez que, no momento em que escrevo, a notícia da condenação de um apresentador por crime de injúria contra uma deputada, nos desperta a atenção. A liberdade de expressão constitui-se em um direito natural de permitir a livre manifestação do pensamento e de ideias e é um dos pilares de uma sociedade democrática, pois trata-se de uma garantia de que o cidadão não possa ser silenciado pelo Estado e que a divergência de opinião será permitida, senão os regimes autoritários somente aceitariam ouvir aquilo que lhe fosse conveniente.
A liberdade de expressão
Segundo Aristóteles, a liberdade é a busca pelo melhor fim, pela virtude cívica. As virtudes individuais devem convergir para a virtude da cidade; e a virtude própria dos governantes deve ser a prudência.
Refletir sobre a liberdade é refletir sobre suas responsabilidades e suas consequências. Para tanto, necessitamos de maturidade para que possamos compreender a dimensão da liberdade, pois, somos livres, mas esta liberdade está intrinsecamente ligada a todas as repercussões resultantes de suas escolhas.
Um das pessoas que melhor entendeu o preço dessa liberdade e seus desdobramentos foi o escritor Fiódor M. Dostoiévski, que no conto O Grande Inquisidor, ambientado no século XVI, Cristo volta à Terra, sem aviso, não para concretizar a sua segunda vinda, mas apenas para fazer uma visita e um cardeal da Inquisição o vê e manda prendê-lo.
Ao visitar Cristo na prisão, o cardeal acusa-o de fracassar em sua missão na Terra, afirmando: “Queres ir para o mundo e estás indo de mãos vazias, levando aos homens alguma promessa de liberdade que eles, em sua simplicidade e sua imoderação natural, sequer podem compreender, da qual têm medo e pavor, porquanto para o homem e para a sociedade humana nunca houve nada mais insuportável que a liberdade!”
Estamos dispostos a assumir o ônus de nossa liberdade?
Diante de tão forte acusação, cabe-nos uma indagação: estamos dispostos a assumir o ônus de nossa liberdade? Estamos, de fato, preparados para arcar com as consequências de nossas ações, ou continuaremos, indefinidamente, depositando nossas esperanças aos pés de um salvador terreno que nos prometa pão? “Porque” – diz o cardeal – “não há preocupação mais constante e torturante para o homem do que, estando livre, encontrar depressa a quem sujeitar-se […] Não existe nada mais sedutor para o homem que sua liberdade de consciência, mas tampouco existe nada mais angustiante”.
Ao final, Paulo Cruz arremata:
“Toda ideologia, seja de direita ou de esquerda, nega a realidade histórica, nega os pressupostos da liberdade e nega o princípio de falibilidade humana, pedras fundamentais da ordem da realidade – inclusive da realidade política. Nossa liberdade deve estar submetida à certeza de que não há soluções fáceis para a nossa condição no mundo, e só a plena consciência dos fundamentos da realidade pode nos livrar de sucumbir aos encantos ideológicos.”
Talvez George Orwell estivesse pensando em um momento como o de agora quando disse: “Nós agora afundamos em uma profundidade em que reafirmar o óbvio é o primeiro dever de homens inteligentes.”
Afinal, somos livres!
6 Comentários
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Excelente abordagem! Assumir o ônus da liberdade passa pelo entendimento de um dos princípios básicos da realidade existencial, que é o fato de que “não existe almoço gratuito”. Cada um deve realizar uma reflexão muito profunda sobre o tema antes de proferir o seu “Grito do Ipiranga”. Parabéns pela reflexão!
Texto maravilhoso! Parabéns! Responsabilidade e maturidade, com toda liberdade atualmente ao alcance, são características que estão se tornando cada vez mais raras.
Parabéns, texto de fácil compreensão,
Tema oportuno, fico feliz e triste, saber que ainda existem muitos escravos, presos na escuridão por falta de conhecimento.
parabens jacques ótimo texto, vindo de um cara como não era supresa.
Nada menos do que o esperado do Sr. Jacques Guarino. Bela escrita e reflexão, mestre. A cada dia que passa me inclino mais para a ideia “Conhecimento só é conhecimento quando se compartilha com o próximo e abre-se mais um par de olhos para a realidade.”